10 de fev. de 2016

Entrevista - Augusto Pellegrini (Radialista, Cantor e Escritor)



Augusto Pellegrini

Quais as primeiras lembranças de música na sua vida, e o que veio primeiro, a música ou a literatura?

As primeiras lembranças marcam muito, e o que eu ouvia quando criança com certeza me mostrou o caminho que eu iria trilhar. Felizmente, meus parentes tocavam muito jazz orquestrado, chorinho e a música popular brasileira da época, e também alguma coisa de clássico ligeiro. Na verdade, naquele tempo o radio proporcionava um tipo diferente de comunicação e a televisão, no seu começo, ainda não poluía como o faz nos dias de hoje.
Acredito que música e literatura chegaram juntas. Eu me lembro de algumas composições que fiz ainda adolescente – acho que a primeira se chamava “Passado tão Presente” e foi composta em 1956, ao mesmo tempo em que exercitava alguns textos que acabaram muito tempo depois se transformando no meu primeiro livro, chamado “Coisas”.
Como curiosidade – e esta informação nunca foi dada antes, posto que um pouco prolixa – o nome “Coisas” foi a consequência de uma série de anotações que eu fazia no diário de um clube de jovens, onde diziam que eu escrevia “coisas de doidos para doidos lerem”, daí originando “coisas de para com”, que seria o título do livro e foi simplificado para “Coisas”.   

Sabemos que você é paulista, como se deu a sua chegada a São Luís e o que mudou de lá para cá na capital do estado.

Sou paulista da capital, e vim para São Luís em julho de 1980. Na época eu trabalhava no Alcoa e fui transferido para cá para participar do projeto de construção da Alumar. Na verdade, fui um dos primeiros a chegar, e tive a meu encargo prover a empresa de toda infraestrutura necessário para o tiro de partida – organizar o escritório com móveis, materiais e equipamentos e estabelecer os primeiros contatos com os fornecedores. Deu tudo certo, o complexo industrial da Refinaria, Redução e Porto foi inaugurado em 1984 como previsto e eu continuei na empresa até 1987, quando saí para cuidar de outros interesses. Aí então já estava “em casa” e não quis mais voltar para São Paulo.
São Luís mudou muito, na época não era esta metrópole cheia de avenidas largas, de vida noturna excitante, de restaurantes diversos, shopping centers, de oportunidades de trabalho e coisa e tal, mas também era mais tranquila em termos de trânsito, violência e estresse.
Para se fazer uma ideia, em 1980 a maioria dos restaurantes aqui fechava para almoço! Fala sério!

     Fale um pouco de sua experiência com rádio em Nova York e como ela se deu.

Aqui há um mal-entendido. Não houve nenhuma participação minha em Nova York, mas sim num prêmio chamado 4th Annual Awards Competition Radio Festival of New York (4ª Edição do Prêmio Internacional de Radio de Nova York), aberto para programas de rádio de todo o mundo e que aconteceu em 1985. Na ocasião eu apresentava o programa Mirante jazz na Radio Mirante FM e fui convidado pelo então diretor da emissora José Aniesse Haickel para inscrever o programa. Fui premiado em segundo lugar, atrás apenas de um programa de Nova Zelândia na categoria “programa musical”, entre 75 inscritos.

 Muito se fala nos meios musicais sobre a influência do jazz na música brasileira através da bossa nova, há quem diga que logo depois  a bossa nova passou a contribuir com o jazz realizando uma retribuição, qual a sua opinião sobre esse tema?

Livro sobre Jazz escrito por Augusto
      As duas proposições estão corretas, mas há uma explicação para isso. O jazz nunca foi uma música fechada em si mesma e sempre aceitou a influência de ritmos e estilos que pudessem contribuir para o seu desenvolvimento. É preciso ter em mente que o jazz representa improviso, criação e técnica apurada, então os músicos de jazz sempre buscaram fórmulas inventivas para a execução e o desenvolvimento da música. Por outro lado, a música brasileira do final da década de 1950 e início da década de 1960 buscava também uma fórmula para modificar a mesmice do samba-exaltação e do samba-canção e procurava uma nova harmonia e um novo balanço, o que acabou acontecendo principalmente depois do aparecimento de João Gilberto. Ressalte-se se João Gilberto nunca admitiu que ele próprio cantasse samba-jazz ou bossa nova, ele sempre se disse intérprete de samba. A linha harmônica imposta pelos músicos da época – Tom Jobim, Roberto Menescal e outros, no entanto, remetia à harmonia jazzística, que foi prontamente absorvida pelos grupos instrumentais – Zimbo Trio, Tamba Trio e outros, de certa forma jazzificando a música brasileira e abrindo caminho para uma nova era de músicos e cantores, todos influenciados pela harmonia moderna então criada. O jazz, por ser uma música eclética e aberta e influências latinas, orientais e eruditas, também foi influenciado, e a partir da chegada da bossa nova incorporou esta característica brasileira na sua linha melódica e principalmente no seu “beat”.

     O Estado do Maranhão é um dos, senão o estado de maior ebulição rítmica da federação, possuímos mais de duzentos ritmos catalogados em nosso território, temos uma tradição literária que se espalha por diversos momentos da literatura nacional, somos um celeiro de artistas com nomes importantes nos mais diversos gêneros, em sua opinião por qual o motivo ainda não alcançamos o reconhecimento devido a nível nacional no campo das artes em geral? Ou não merecemos tal título?

A qualidade da música e do músico maranhense é inegável. Não conheço profundamente a música dos outros estados, mas a amostra que me tem sido oferecida me diz que o Maranhão se produz possivelmente a melhor música do país, livrando as devidas proporções do samba do Rio de Janeiro, da MPB de qualidade  e uma ou outra coisa isolada. No entanto, falta ao Maranhão três coisas essenciais para a divulgação do trabalho dos músicos, condição necessária para que a nossa música seja reproduzida em outras partes e possa ser apreciada: (a) a ousadia dos nossos músicos em sair para os grandes centros e dar a cara pra bater, como fizeram Alcione, Nonato Buzar, Papete, e mais recentemente Zeca Baleiro, Rita Beneditto, Glad Azevedo e em menor extensão Flavia Bittencourt; (b) a mídia, de um modo geral, que nos impõe culturas pífias de outros lugares, como lambada, axé, arrocha, sertanejo universitário e outras obscenidades e não reserva muito lugar para o que aqui é produzido; (c) a vontade política dos órgãos governamentais que deveriam deixar de pensar na música maranhense como a cultura de seu quintal eleitoral, apenas  fazendo concessões aqui e ali para mostrar simpatia pelo som da terra, e agir como foi feito na Bahia, como um investimento maciço na exportação das nossas coisas – música, culinária, turismo – atraindo divisas e valorizando os artistas do Maranhão.
Quero deixar claro, porém que apesar de ver com simpatia o problema do chamado “músico da terra”, eu tenho, como músico e apreciador de música, a preocupação voltada principalmente a outro nicho igualmente discriminado, do qual fazem parte o jazz e o rock. 

     Uma vez assisti uma entrevista de um regente de orquestra que citava o Sargeant Peppers dos Beatles, traçando um paralelo entre o disco e a Nona Sinfonia de Beethoven. Segundo o regente do clássico Sargeant Peppers os músicos dos Beatles teriam exaurido no conceito musical do álbum, tudo que uma banda de rock poderia alcançar de qualidade sonora, estética e conceitual tal qual o fez Beethoven. Existe a possibilidade de na música pop surgir uma obra tão genial quanto esse disco fabuloso?


     É muito difícil fazer qualquer afirmação ou previsão quando o assunto é genialidade na arte. Algumas composições de Mozart pareciam insuperáveis até que apareceu a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach, e esta, por sua vez, acabou questionada pela Nona Sinfonia por ocasião da estreia desta em 1824. Além do mais, o conceito musical dos Beatles não se limita às músicas do chamado ié-ié-ié, do Álbum Branco, rascante e pesado, do inteligente Abbey Road ou da genialidade – conforme diz o próprio maestro – do Sgt Peppers. Os Beatles impuseram um limite definitivo entre a sua música e os músicos de rock, qualquer que seja o estilo, isto é, Beatles tocam “Beatles”, os outros tocam rock. Talvez aí resida a dificuldade. Há que aparecer algum outro músico ou grupo de músicos tão especial que possa rivalizar com a obra dos Quatro de Liverpool e no momento atual isto não parece possível. 

     Sabemos que com a chegada da internet houve uma facilidade tremenda ao acesso dos grandes discos da música mundial. Na sua opinião quais os prós e os contras se houverem dessa revolução proporcionada pelos computadores em rede?

A grande virtude da facilidade em se encontrar praticamente todas as músicas algum dia gravadas e existentes no mundo é a chamada “democratização”. Antes que a tecnologia propiciasse a reprodução de músicas através do rádio ou da venda de discos, somente os poderosos tinham acesso à música mais elaborada, contando com audições ao vivo, restando à classe pobre a música mais popular limitada à região onde eles viviam. A tecnologia vem modificando este conceito de divulgação musical de uma maneira veloz e eficiente. Hoje podemos não apenas ouvir a citada Nona Sinfonia de Beethoven como assistir a sua execução nas melhores salas de espetáculo do mundo, com grande fidelidade visual e sonora, através dos melhores regentes via youtube. Por outro lado, a mercantilização da música de baixa qualidade também ficou mais acessível. Qualquer músico sem a menor qualidade também pode lançar sua produção na rede e isto, aliado a interesses comerciais de grupos de produtores ou de empresários, pode contaminar o universo da música, fazendo como vítimas aqueles incautos que são atraídos por esse chamariz nocivo.

É visível a queda de qualidade da música na atualidade a nível mundial, outros afirmam que o que acontece é que o livre acesso dos verdadeiros artistas às mídias tradicionais como o rádio e a TV nos dá essa sensação de esvaziamento artístico em relação a outros períodos. Dê-nos a sua opinião sobre o assunto.

Hoje em dia existe toda uma organização voltada a ganhar dinheiro fácil com música. Produtores e empresários descobriram a fórmula que utiliza músicos excelentes e uma excelente aparelhagem de som e luz para dar cobertura a cantores muitas vezes medíocres que interpretam músicas comuns explorando no máximo três acordes, um refrão repetitivo acompanhando gestos com laivos de obscenidade e todo um mis-en-scene produzido para fazer o público cantar e dançar. O radio e a TV divulgam maciçamente estas músicas de segunda qualidade e existe toda uma indústria por trás de todo o processo que geralmente culmina com shows ao vivo assegurando muito dinheiro na venda de ingressos, de CDs e DVDs. Trata-se se um processo de emburrecimento coletivo ao qual é submetida toda a faixa jovem da população brasileira.

Existe uma linha de pensamento na atualidade que afirma que tudo o que hoje escutamos em termos musicais são apenas ecos estruturais sonoros do período de ouro da música erudita. Seriam repetições de ideias de grandes compositores como Beethoven, Mozart, Schubert, Chopin, Wagner e outros. A seu ver houve de fato uma queda brusca de originalidade das obras? Ou vivemos um período de transição para um novo período da música em si?

É claro que toda a herança musical deixada pelos grandes compositores teve e tem uma influência profunda em tudo o que se produz de música no mundo, pois eles funcionam como professores que oferecem toda uma gama de possibilidades utilizando como base unicamente as notas e os acidentes musicais. A música erudita foi, a seu tempo, uma grande referência para os compositores. No entanto, assim como aconteceu – e acontece – com os próprios músicos eruditos, a música vive um eterno período de transição. O músico é um criador que tem suas referências no que já existe, mas apenas se satisfaz quando consegue exprimir seus sentimentos de uma forma própria e particular. Isto é particularmente visível no jazz, quando através de releituras e de improvisos o intérprete se torna um coautor do tema. A própria música erudita nada mais é do que um aprimoramento de temas populares, rurais e campestres como danças típicas e cantos folclóricos da cada região da Europa, seu berço.


A raça negra é sabido de todos, possui uma profunda contribuição para a música pop em geral, teríamos como imaginar essa música sem os temperos trazidos das terras da Mãe África? Como seria a música do século passado para cá sem o sentimento e a riqueza rítmica dos músicos de origem negra?

O negro adicionou dois elementos importantíssimos à musica ocidental europeia: o ritmo forte (não confundir com cadência) e a nota intermediária na escala cromática, que apenas dispunha dos bemóis e dos sustenidos (nota que o jazz chama de blue note e que segue a entonação da voz humana). A influência do negro se fez apenas a partir de meados do século 18 por causa do tráfico de escravos, e a América foi o primeiro continente beneficiado por estas duas inclusões. No sul, o Brasil assumiu o ritmo como fator preponderante, influenciando as modinhas, polcas e valsas que chegaram com a Corte Portuguesa e dando à música o devido tempero. No norte, os Estados Unidos assimilaram principalmente a linha harmônica, o que foi fundamental no surgimento do blues e do jazz. Quando os Estados Unidos começou a exportar o jazz para a Europa, lá se processou outra revolução, com a assimilação de um ritmo e de uma harmonia até então inexistente. O fenômeno se multiplicou e hoje, duzentos e cinquenta anos depois, o mundo fala a mesma linguagem musical. Assim, com exceção das músicas expressamente regionais ou folclóricas (no Brasil, o bumba-meu-boi, o maracatu, o samba autêntico, a chamarrita gaúcha, etc,) todo o universo musical adquiriu elementos desse processo histórico, em especial a música pop, que é uma novidade  com menos de quarenta anos de idade. A inclusão do negro na música possibilitou a existência do jazz, do samba, de todo tipo de tambor, do reggae, do funk, do hip-hop, além de incrementar todos os ritmos latino-americanos. É difícil imaginar como seria a música de hoje sem o aparecimento do negro com todo o seu tempero, mas possivelmente seria um bocado chata.           

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